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Itesp organiza dossiê da Chácara dos Pretos para acionar apuração do governo federal

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Em busca de recursos jurídicos federais aplicáveis à assistência de partes do processo conhecido como Chácara dos Pretos, o Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp) apura documentação a ser utilizada. Uma das expectativas tem em vista compensação aos descendentes dos herdeiros de escravos.

Na diretoria do Itesp, em São Paulo, o tema reuniu diretores da entidade e comitiva de rio-clarenses acompanhada do vereador Paulo Guedes. Integrante do grupo, o secretário municipal de Justiça, Gustavo Perissinto, considerou que eventual “compensação, caso ocorra, terá de ser financeira, já que a devolução da área é impossível devido ao avanço populacional e à construção da rodovia no local”.

Para entender o caso

Cruzada pela rodovia Washington Luiz e pela nova ferrovia, a área de quase vinte bairros, da saída para São Carlos ao bairro Consolação e do Jardim São Paulo ao Bonsucesso e Jardim das Palmeiras, foi de descendentes de escravos até 1954. Por manobra de agentes políticos, agentes imobiliários e outros da época os proprietários acabaram sem o patrimônio no episódio chamado de Chácara dos Pretos.

Nacionalmente conhecido com um dos mais expressivos processos de grilagem no interior paulista, o caso passa ser retomado pelo Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), conforme divulgado pela imprensa. O tema está apresentado ao Itesp por familiares dos antigos proprietários que buscam apoio municipal e federal na expectativa de algum ressarcimento pelo prejuízo sofrido.

Entre o legal e o moral

O termo grilagem refere-se ao propósito de assenhorar-se de terras alheias mediante manobras documentais. O mérito propriamente dito do caso não chegou a ser apurado em ação ajuizada como prescrita.

A cultura do município, no entanto, não dá o assunto por encerrado devido à significância de seus aspectos políticos e morais face à comunidade negra nacional em tempos de consolidação dos direitos humanos. Quem fez o quê? Qual poderia ter sido o resultado da ação se tivesse ocorrido o julgamento do mérito propriamente dito? Estas e outras perguntas já se destacam como pétreas na história local.

O processo

É 7 de abril de 1972. Processo é movido por iniciativa de João dos Santos Filho, curador da Alfredo Marques da Mata. Representando os interesses do descendente de escravo, os advogados Alfredo Perez Munhoz e Carlos Américo Reges acionam o Fórum local.

Eles defendem que seu cliente fora vítima de manobra documental em que políticos, agentes imobiliários e outros tomaram as terras dele. O patrimônio em litígio é uma fração de área mais ampla igualmente tomada de parentes do cliente. No total as vítimas seriam nove, mais seus descendentes.

Conforme os advogados, todos os nove teriam sido levados a assinar documentos pelos quais transferiam seus direitos de propriedade ao agente imobiliário S.A. Assim o fizeram com base em um acordo em que o agente regulamentaria o patrimônio por processo de uso capião e, na sequência, cuidaria de retorná-lo a seus legítimos donos. Mas, apesar de o processo de uso capião obter ganho de causa, em apenas dois meses, por motivos obscuros S.A não restitui as propriedades.

Na defesa de Alfredo da Mata, os advogados o qualificam como mentalmente incapaz para responder por assinatura de transferência de direitos. Chamam a atenção ainda para o fato de ele ser analfabeto. A 5ª Câmara Civil decide que as provas da alegada insanidade mental são insuficientes.
Não obstante, Alfredo da Mata segue como paciente do Hospital Psiquiátrico de Franco da Rocha. Ali é interno desde 1964, quando matara a queima-roupa um jovem na Vila Aparecida. Ele dizia que a execução se dera por orientação do governador Ademar de Barros e um delegado local pelo fato do jovem assassinado ser comunista. Por ser clinicamente considerado inimputável acabou transferido para o manicômio.

A decisão da 5ª Câmara Civil pela falta de provas de insanidade levou em conta o depoimento de H.H. Ele disse nunca haver notado qualquer anormalidade no comportamento de Alfredo da Mata. O depoente e o descendente de escravos trabalharam juntos como agentes imobiliários no escritório de W.K em 1954, ano em que se deu a transação da Chácara dos Pretos. No demais, a decisão judicial entendeu o assunto todo como prescrito.

O fato original

Em 1954 Alfredo da Mata trabalhava com H.H. como contato de vendas imobiliárias para W.K. e F.M. Ali também exercia essa atividade A.C. O grupo era vinculado ao oficial maior de cartório A.P. e assistido pelo advogado R.C. Deles, S.A. foi o que assumiu o propósito de arregimentar Alfredo da Mata e os demais herdeiros da Chácara dos Pretos para assinarem os documentos que legalizassem a transferência de direitos para o processo de uso capião. Os signatários eram analfabetos. O expediente advocatício prestado por R.C ao grupo foi pago pelos negros com terras.

Assassinado

Alfredo Marques da Matta acabou assassinado dentro do Hospital Psiquiátrico de Franco da Rocha em 1985. O laudo de morte registra que ele foi vítima de traumatismo encefálico por batida na cabeça. A apuração oficial é de que houve agressão por parte de outro interno. Seu executor já havia matado duas outras pessoas da mesma forma.

A herança

Proprietária da antiga fazenda Palmeiras, Maria Teresa de Jesus, viúva, em 1857 deixou por testamento a seus escravos patrimônio de 150 alqueires de terra. Conforme o texto, a propriedade não poderia ser transferida para terceiros.
Os beneficiários viveram no local até 1954, quando a chamada Chácara dos Pretos foi transferida para S.A. A partir de então, foram excluídos de acesso ao que um dia fora deles.

Entre os proprietários estabelecidos na região da antiga chácara encontram-se a Rede Ferroviária Federal, o DER e compradores do grupo que ficou as terras.

Em 1963 o prefeito Armando Oreste Giovanni desapropriou 30 mil metros quadrados de área para doação à indústria Comapa. A área já havia passado por dois dos integrantes do grupo que ficou com a Chácara dos Pretos.

O testamento

1857 – Maria Teresa de Jesus, filha de Sebastião Domingues e Ana Teixeira: “a todos os meus escravos, aos quais dou liberdade, (deixo) a minha chácara com todas as benfeitorias e os trastes de uso interior da casa para em comum gozarem. Declaro que esta chácara nunca será sujeita a dívidas e nem por forma alguma será alienada porque assim seus descendentes terão dela usufruto. Declaro que os escravos que deixo em cativeiro, desde que conseguirem sua liberdade, ficarão com igual direito na dita chácara…”